12 de agosto de 2009

Outra história surpreendente

Como frequentemente costuma acontecer quando se vasculha a Web durante a pesquisa sobre um determinado assunto, dei de cara recentemente com uma história tão interessante quanto improvável.

Primeiro, pense em um jovem escritor, ainda desconhecido. Filólogo por formação, e profundamente devotado à cultura de seu povo, o qual não possui um Estado próprio, ele começa a militância em grupos que querem a autodeterminação.

Como era de esperar, ele foi processado pelo governo central e condenado à prisão. Pena de 22 anos.

Encarcerado, cumpriu 5 anos até escapar de uma forma digna de filme hollywoodiano.

Como? Um conhecido cantor da mesma etnia foi fazer um show na prisão. Após a saída dos músicos, durante a contagem dos presos, a direção verificou que dois estavam faltando: nosso escritor e outro militante nacionalista. Como ocorreu a fuga? Eles simplesmente saíram escondidos dentro dos grandes auto-falantes da banda, que foram carregados até os veículos por outros presos.

Nosso personagem caiu na clandestinidade (e provavelmente no exílio), e jamais reapareceu publicamente (pesquisando um pouco mais, uma fonte afirmou que os processos já estão prescritos, e nosso escritor poderia voltar à vida normal, porém não consegui encontrar uma confirmação).

E já se vão 24 anos desde então...

Se parasse por aqui, a história seria interessante mas apenas mais uma dentre muitas desse tipo que conhecemos. O que diferencia nosso personagem é que ele tem aproveitado esse tempo para uma prolífica produção, tanto de obras próprias quanto de traduções de escritores estrangeiros para a sua língua materna. E com essa produção, mesmo na clandestinidade, ganhou alguns prêmios literários.

T.S. Elliot, Robert Louis Stevenson, Samuel Taylor Coleridge e Fernando Pessoa são alguns dos escritores mais conhecidos que ele traduziu. Escritores galegos, catalães e latino-americanos também são outros alvos frequentes de seu trabalho.

Ah, ele traduziu a Antologia Poética, de um tal de Manuel Bandeira. Familiar?

Bem, hora de dar nome aos bois...

Nosso personagem chama-se Joseba Sarrionandia Uribelarrea, e nasceu em Iurrreta, no País Basco, em 1958.

Eis seu poema mais conhecido:

O escravo ferreiro

Preso nas selvas do ocidente
trazeram-te a Roma, escravo,
deram-te o ofício de ferreiro
e fazes grilhões.
O ferro vermelho que sacas dos fornos
pode moldar como queiras,
podes fazer espadas
para que os teus compatriotas rompam as suas cadeias,
mas tu, esse escravo,
fazes grilhões, mais grilhões



Aqui vale um adendo.

Sou um profundo entusiasta da causa independentista do País Basco. Acredito piamente que aquele povo tem direito á gerir com inteira soberania o seu destino, e que os governos de Espanha e França serão obrigados, mais dia menos dia, a reconhecer inteiramente os direitos do povo basco. Mas não posso me furtar a uma constatação clara: a organização armada ETA perdeu o bonde da história, e vai acabar sendo marginalizada dentro de seu próprio povo. Hoje é apenas um grupo reduzido de fanáticos dissociados da realidade, que nem mesmo podem invocar a bandeira "revolucionária" sem deixar os verdadeiros militantes das causas progressistas com náuseas.

Perdeu aquela aura de lutadores contra a ditadura franquista, e mais, se afastou completamente das motivações que lhe deram origem 50 anos atrás. Não vê que, apesar de os governos espanhol e francês não tratarem da questão basca com o devido cuidado e respeito, ambos os países são democracias, contra as quais a luta armada não faz o menor sentido. Ela apenas alimenta aquele monstro que chamamos de facismo, que vive á espreita aguardando desculpas para mostrar seus dentes.

Talvez falte ao grupo e seus simpatizantes elementos com uma visão clara de mundo, como os que existiam dentro do IRA e de seus braço político, o Sinn Fein, o que propiciou o acordo que transformou a Irlanda do Norte em um lugar, senão de perfeita paz, pelo menos incomparavelmente mais justo hoje do que meros 15 anos atrás.

Repito: todo apoio ao povo basco em sua busca por justiça e liberdade.

Mas chega desse infrutífero derramamento de sangue.

6 comentários:

Anônimo disse...

Luiz, a forma administrativa espanhola dá a suas regiões uma independência infinitamente maior até do que a federação americana. O pais basco comanda quase tudo. De cultura, orçamento, educação...

Iguais a ela soma-se a Catalunya, a Galícia, a Comunidade Valenciana, Andaluzia e outras regiões.

A Espanha hoje é um Estado de Autonomias, uma federação descentralizada.

O País Basco e Navarra administram seu orçamento sem contar praticamente com supervisão do governo central. O País Basco possui até mesmo polícia própria.

O que o ETA quer é poder, dinheiro. Apanas isso. Não consegue apoio majoritário nem mesmo entre os bascos.

Luiz disse...

Pablo,

Por maior que seja a autonomia, não é comparável à independência.

Catalães (em nível razoável) e galegos (um pouco menos) também sonham com mais autonomia, mas essas regiões tem uma integração cultural e histórica um mais sólida com a Espanha do que o País Basco.

As demais regiões são o coração da Espanha, e sua autonomia existe apenas para evitar ressentimentos.

Anônimo disse...

Isso apenas porque existe o ETA. Se o ETA não existisse tenho certeza que acharia o mesmo da Catalunya e Galícia.

Uma minoria de terroristas não pode representar o sentimento da maioria de cidadãos.

Luiz disse...

Pablo,

Eu não acho que o ETA seja representativo da maioria do povo basco. O que eu disse no post deixa isso bem claro. E a luta armada na Europa perdeu qualquer justificativa (por mais enviesada que fosse) faz muito tempo. Na Espanha, desde o fim do franquismo, pelo menos.

Porém, a estratégia do governo espanhol de cercear as organizações políticas bascas mais radicais é contraproducente. Alegar que são ligadas ou simpáticas ao ETA é desculpa esfarrapada para impedir que se organizem.

O Sinn Fein nunca renegou completamente o IRA, e mesmo assim funcionava abertamente, participava de eleições, e seus deputados (quando estavam soltos) tinham direito de participar do Parlamento inglês. A maioria optava por não fazê-lo para não ter que jurar fidelidade à rainha, mas isso era opção deles. Pois foi exatamente pelo Sinn Fein existir livremente e ser representativo que negociações de paz puderam acontecer e evoluir. O que sobrou de grupos armados na Irlanda do Norte é um bando de lunáticos.

Dar voz a todas as correntes políticas bascas provavelmente seja o melhor caminho para isolar e silenciar o ETA. Os poucos que ainda o apóiam poderiam se expressar através de grupos políticos, deixando de lado a violência.

Sobrariam, de novo, só os lunáticos.

Pablo Vilarnovo disse...

Isso é verdade. Concordo.

Luiz disse...

Pablo,

Dá uma lida nesta notícia:

http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,policia-francesa-encontra-suposto-esconderijo-de-armas-do-eta,421958,0.htm

Mais precisamente no penúltimo parágrafo.

Os lunáticos parecem estar ficando isolados mais rapidamente do que eu supunha.