Como já falei anteriormente, faz um bom tempo que, por diversas razões, quase não saio de casa para ir ao cinema. A principal é o comodismo. Prefiro esperar que os filmes passem na TV por assinatura. Em alguns casos, quando o interesse é um pouco maior, alugo o DVD. Reservo a ida ao cinema apenas para obras muito relevantes, sempre pela minha ótica bem particular. Por exemplo, este ano fui ao cinema apenas uma vez, audaciosamente indo...
Neste espaço já tive a chance de comentar interessantes obras que encontrei acidentalmente na grade de programação das emissoras de TV. Digo acidentalmente porque não costumo sair vasculhando guias de programação ou coisa do tipo. No máximo, quando vejo a chamada de algo interessante, me programo para assistir.
Alguns dos melhores filmes que assisti nos últimos tempos coincidiram de ser europeus, tanto de ficção quanto documentários. Houve até uma fase pesadamente alemã, a que se somaram filmes ingleses e espanhóis. Confesso que o cinema de ficção francês nunca me interessou particularmente, sempre me soou meio arrastado, com atuações forçadas. Às vezes uma ou outra cinebiografia ou então um semi-documentário chamam minha atenção, e só.
Desta vez, confesso, fiquei realmente impressionado. Um documentário francês de pouco mais de 2 horas sobre um personagem que mereceria muito mais, talvez uma série (na França existe uma verão em DVD com quase 4 horas).
Falo de "O Advogado do Terror", filme de 2007 dirigido por Barbet Schroeder, e que tenta jogar uma luz sobre um dos mais intrigantes personagens da segunda metade do século XX e do início do século XXI. Falo de Jaques Vergès, um advogado francês, de ascendência vietnamita por parte de mãe, e famoso por ter um dos portfólios de clientes mais controversos da história do Direito.
Para que vocês possam ter uma ideia, ele ficou famoso nos anos 50 defendendo militantes argelinos que participavam da luta armada anticolonialista contra a França. Depois disso, ele defendeu, dentre outros: militantes palestinos presos em Israel e na Europa, membros do grupo alemão Baader-Meinhof, o famoso terrorista Carlos, o Chacal (além de outros membros do grupo), o Ayatollah Khomeini, o carrasco nazista Klaus Barbie, os líderes do Khmer Vermelho e meia dúzia de ditadores africanos, além de ter se oferecido para defender Slobodan Milosevic e Saddam Hussein. Por isso tudo a mídia costuma chamá-lo de "O Advogado do Diabo", e ele parece se divertir com isso.
O filme é particularmente instigante porque tenta (e consegue) não fazer nenhum juízo de valor sobre Vergès, deixando totalmente a cargo do espectador fazê-lo. Há uma enorme quantidade de depoimentos contra e a favor, além de alguns que deixam mais coisas subentendidas do que claras.
Por exemplo, um membro dos serviços secretos franceses deixa transparecer que Vergès poderia ter sido, em certo período, colaborador dos órgãos de segurança da França. Outros depoimentos, apesar de não confirmarem, não conseguem apagar a suspeita de que ele tenha ficado certo período no Cambodja assessorando Pol Pot, o líder máximo do Khmer Vermelho e responsável, direta ou indiretamente, por mais de 1 milhão de mortes.
Outra boa faceta do filme é que ele permite que conheçamos melhor alguns episódios que nunca foram bem explanados aqui no Brasil, ou em alguns casos são quase desconhecidos.
Vale a pena destacar dois deles. O primeiro mostra como o governo Mitterand foi chantageado pela organização do Chacal para que libertasse dois de seus membros que estavam presos. Para conseguir seu intento, eles promoveram uma campanha de atos terroristas, quase sempre atentados á bomba, que mataram dezenas de inocentes.
O segundo é mais remoto, porém ainda mais trágico. Trata-se dos acontecimentos ocorridos no dia 8 de maio de 1945 (e nos seguintes) na cidade argelina de Setif e em mais algumas das proximidades. Embalados pela vitória aliada contra os nazistas (lembrem: 8 de maio foi o dia exato da rendição alemã), uma multidão de argelinos foi às ruas em comemoração e pedindo mais liberdade em seu país. A manifestação, que era autorizada, começou de maneira pacífica, com a multidão cantando músicas nacionalistas. Entretanto, aos poucos foram aparecendo bandeiras argelinas, o que era proibido. A polícia tentou confiscá-las de maneira violenta, e acabou atirando contra a multidão, matando grande número de manifestantes. A multidão, que passava por um bairro habitado por colonos franceses (os pied-noir), resolveu revidar violentamente contra os civis europeus, matando várias dezenas.
A reação do governo colonial, e aprovada por De Gaulle, foi brutal. Tropas do exército e da polícia, auxiliados por milícias formadas pelos colonos franceses, e com apoio de bombardeios aéreos e, pasmem, navais, fizeram um banho de sangue. O número exato de vítimas jamais será conhecido, mas as estimativas mais acreditadas, feitas por estudiosos franceses, variam entre 6000 e 20000 mortos. O consulado geral americano chegou a falar em 45000 vítimas, mas parece ser um número exagerado. Foi este episódio que pavimentou o caminho para a insurreição geral contra a ocupação francesa que começaria 9 anos depois.
Voltando ao filme, recomendo com ênfase. Mas aviso: não é uma obra fácil de digerir.
Neste espaço já tive a chance de comentar interessantes obras que encontrei acidentalmente na grade de programação das emissoras de TV. Digo acidentalmente porque não costumo sair vasculhando guias de programação ou coisa do tipo. No máximo, quando vejo a chamada de algo interessante, me programo para assistir.
Alguns dos melhores filmes que assisti nos últimos tempos coincidiram de ser europeus, tanto de ficção quanto documentários. Houve até uma fase pesadamente alemã, a que se somaram filmes ingleses e espanhóis. Confesso que o cinema de ficção francês nunca me interessou particularmente, sempre me soou meio arrastado, com atuações forçadas. Às vezes uma ou outra cinebiografia ou então um semi-documentário chamam minha atenção, e só.
Desta vez, confesso, fiquei realmente impressionado. Um documentário francês de pouco mais de 2 horas sobre um personagem que mereceria muito mais, talvez uma série (na França existe uma verão em DVD com quase 4 horas).
Falo de "O Advogado do Terror", filme de 2007 dirigido por Barbet Schroeder, e que tenta jogar uma luz sobre um dos mais intrigantes personagens da segunda metade do século XX e do início do século XXI. Falo de Jaques Vergès, um advogado francês, de ascendência vietnamita por parte de mãe, e famoso por ter um dos portfólios de clientes mais controversos da história do Direito.
Para que vocês possam ter uma ideia, ele ficou famoso nos anos 50 defendendo militantes argelinos que participavam da luta armada anticolonialista contra a França. Depois disso, ele defendeu, dentre outros: militantes palestinos presos em Israel e na Europa, membros do grupo alemão Baader-Meinhof, o famoso terrorista Carlos, o Chacal (além de outros membros do grupo), o Ayatollah Khomeini, o carrasco nazista Klaus Barbie, os líderes do Khmer Vermelho e meia dúzia de ditadores africanos, além de ter se oferecido para defender Slobodan Milosevic e Saddam Hussein. Por isso tudo a mídia costuma chamá-lo de "O Advogado do Diabo", e ele parece se divertir com isso.
O filme é particularmente instigante porque tenta (e consegue) não fazer nenhum juízo de valor sobre Vergès, deixando totalmente a cargo do espectador fazê-lo. Há uma enorme quantidade de depoimentos contra e a favor, além de alguns que deixam mais coisas subentendidas do que claras.
Por exemplo, um membro dos serviços secretos franceses deixa transparecer que Vergès poderia ter sido, em certo período, colaborador dos órgãos de segurança da França. Outros depoimentos, apesar de não confirmarem, não conseguem apagar a suspeita de que ele tenha ficado certo período no Cambodja assessorando Pol Pot, o líder máximo do Khmer Vermelho e responsável, direta ou indiretamente, por mais de 1 milhão de mortes.
Outra boa faceta do filme é que ele permite que conheçamos melhor alguns episódios que nunca foram bem explanados aqui no Brasil, ou em alguns casos são quase desconhecidos.
Vale a pena destacar dois deles. O primeiro mostra como o governo Mitterand foi chantageado pela organização do Chacal para que libertasse dois de seus membros que estavam presos. Para conseguir seu intento, eles promoveram uma campanha de atos terroristas, quase sempre atentados á bomba, que mataram dezenas de inocentes.
O segundo é mais remoto, porém ainda mais trágico. Trata-se dos acontecimentos ocorridos no dia 8 de maio de 1945 (e nos seguintes) na cidade argelina de Setif e em mais algumas das proximidades. Embalados pela vitória aliada contra os nazistas (lembrem: 8 de maio foi o dia exato da rendição alemã), uma multidão de argelinos foi às ruas em comemoração e pedindo mais liberdade em seu país. A manifestação, que era autorizada, começou de maneira pacífica, com a multidão cantando músicas nacionalistas. Entretanto, aos poucos foram aparecendo bandeiras argelinas, o que era proibido. A polícia tentou confiscá-las de maneira violenta, e acabou atirando contra a multidão, matando grande número de manifestantes. A multidão, que passava por um bairro habitado por colonos franceses (os pied-noir), resolveu revidar violentamente contra os civis europeus, matando várias dezenas.
A reação do governo colonial, e aprovada por De Gaulle, foi brutal. Tropas do exército e da polícia, auxiliados por milícias formadas pelos colonos franceses, e com apoio de bombardeios aéreos e, pasmem, navais, fizeram um banho de sangue. O número exato de vítimas jamais será conhecido, mas as estimativas mais acreditadas, feitas por estudiosos franceses, variam entre 6000 e 20000 mortos. O consulado geral americano chegou a falar em 45000 vítimas, mas parece ser um número exagerado. Foi este episódio que pavimentou o caminho para a insurreição geral contra a ocupação francesa que começaria 9 anos depois.
Voltando ao filme, recomendo com ênfase. Mas aviso: não é uma obra fácil de digerir.
4 comentários:
Ótimo post Luiz, ótimo texto. Pode-se falar várias coisas a respeito de Vergès, menos que ele não tinha personalidade e caráter. De que tipo, fica a cargo de cada um.
Perguntaram a Vergès se ele defenderia Hitler e ele redarguiu: "Eu defenderia Bush, desde que ele confessasse ser culpado."
Com um currículo e uma clientela desses, o cara é (poderia ser) uma baita testemunha da vida política da segunda metade do século XX. Principalmente se ele tiver a facilidade para contar fatos como tem para aceitar constituintes.
Como o amigo Luiz está elogiando, vê-se que Barbet Schroeder não desperdiçou o tema, como fez no insuportável "Barfly".
Conterrâneo, como sempre seu texto é muito bom e a resenha está formidável. Já passei os olhos pelo filme rapidamente, numa zapeada, mas agora ficarei atenta à grade de programação.
Sobre a questão da Argélia, recentemente um historiador ingles, Timothy Garton Ash, publicou um texto interessantissimo sobre como as coisas degringolaram na Europa do Leste, depois do fim da URSS. Foi no Mais da FSP e é só a primeira parte.
Baixar o Documentário - O Advogado do Terror - http://bit.ly/sTnIBE
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