9 de fevereiro de 2009

Encarte acidental (ou não...)

Engraçado como conversas descontraídas às vezes fazem aflorar lembranças solidamente escondidas nos subterrâneos de nossas memórias. E olha que que nem estou falando dos temas do post anterior...

Falando com companheiros de caixa de comentário em um blog de frequencia quase obrigatória, apareceu o tema livros de Dostoiévski (aliás, hoje é o aniversário de morte do cara...), e eu citei que precisava reler Mãe, o qual havia lido na adolescência e de que quase nenhuma lembrança ficara...

Naquele instante, enquanto escrevia, emergiu uma lembrança no mínimo curiosa e que vale relatar.

O exemplar do livro ao qual tive acesso me foi emprestado por uma pessoa do meu círculo familiar, que tinha um histórico de militância nas organizações de esquerda que, naquela época, combatiam a ditadura, inclusive recorrendo à luta armada. Ele já havia sido preso, torturado e, naquele instante, seu partido participava das articulações que possibilitariam, anos depois, a transição para a democracia. A época mais violenta da repressão tinha terminado pouco tempo antes, e só grupos muito isolados ainda falavam em desafiar militarmente o regime.

Esse amigo me ofereceu o livro sem que eu houvesse pedido (era um exemplar em português impresso por uma editora russa), e comecei a lê-lo. E foi aí que a coisa apareceu...

Eu estava um pouco antes da metade quando, do nada, a trama foi interrompida. O texto que apareceu impresso era, nada mais nada menos, que parte de um manual de guerrilha, voltado para a luta armada no campo. Estava recheado de exemplos retirados da experiência de luta dos vietcongs e, em menor escala, dos revolucionários cubanos.

Eram cerca de 40 páginas impressas no mesmo formato gráfico do restante do livro, e recheadas de instruções e dicas de como levar adiante certos aspectos do combate, especialmente sabotagem. Tratava também de aspectos de segurança das operações, e como lidar com a população civil.

Lembro de ter notado que, aparentemente, o texto era parte de algo maior, e que por começar e terminar abruptamente deixava a impressão de que a inclusão dentro do romance poderia ter sido acidental. Nunca tirei essa dúvida, até porque, preocupado com o conteúdo, tratei de terminar a leitura do livro rapidamente e devolvi o exemplar ao meu amigo. Não tenho certeza, mas acho que não comentei nada com ele sobre a parte "intrusa".

Como ainda vivíamos na ditadura (era o governo Geisel), não comentei o assunto com mais ninguém na época, e acabei desterrando o tema para as profundezas do meu subconsciente. Devo ter comentado, de lá pra cá, com no máximo umas três pessoas e sem dar detalhes.

Ah! Antes que eu esqueça, o amigo que me emprestou o livro seguiu na política e depois da redemocratização foi eleito para cargos públicos. Nos vemos muito pouco, mas ele continua uma grande figura.

10 comentários:

Anônimo disse...

Luiz,

Nas décadas de 1960/70 e 80 as obras em português vindas da URSS eram, quase sempre, das editoras MIR e Progresso, ambas de Moscou.Aqui em São Paulo havia uma minúscula livraria, no centro, chamada Tecno-Científica, que comercializava essas e outras editoras.

Por coincidência, soube e li, em duas ocasiões, incidentes parecidos com o que você testemunhou. Tempos depois, soube que os "incidentes" não eram, propriamente, involuntários.

Aquelas editoras (e algumas outras) chegaram a utilizar o recurso de enxerto de textos dissimulados, para burlar certos trâmites e triagens de ditaduras espalhadas pelo mundo. As capas e várias páginas eram de obras consagradas e, a certa altura, o teor mudava para outro assunto.

Talvez o incidente tenha chegado até você por equívoco de envio e distribuição.

Marcelo disse...

Luiz,

Essa história é ótima. Acho que se tivesse acontecido comigo, não teria devolvido o livro. Imagine uma preciosidade dessas na minha biblioteca particular...

E que bom ver o nosso grande nada comentando por aqui. Audiência qualificada é isso!

Anônimo disse...

Seria uma boa história lá no meme, Luiz.

Mas conta aí... coméquifaz prá tomar de assalto o campo inimigo?

=-)

Pax disse...

Essa história é ótima. Além de estar escrita de forma brilhante.

Realmente é bom passar por aqui.

El Torero disse...

Muito boa a história Luiz. Tenho amigos historiadores que vão adorar se fascinar com esta.

Meu bisavó, George Nagel(depois virou Jorge), era professor de uma colônia alemã no sul do estado, teve seus livros apreendidos na segunda guerra. Não sobrou um único. Tirando a parte esquizofrênica da questão, sob a ótica de quem queria acabar com a identidade alemã na época, os livros realmente são vetores de muita transformação.

Unknown disse...

Os livros sempre nos surpreendendo.
Muito interessante sua historia, Luiz.
Curiosidade e saber se esse livro ainda existe.

Anônimo disse...

Luiz,

Fantástica história. O adendo do Nada contribuiu para deixá-la ainda melhor.

Parabéns, cara. Você é ótimo.

Luiz disse...

Nada,
Valeu pelo adendo. Sua opinião bate com a minha.

Darw,
Na época, não tive a presença de espírito de "esquecer' de devolver...

Nhé!,
Acho que uma infiltração noturna é uma ótima opção.
:-)

El Torero,
Realmente esse fato é bem representativo de um período peculiar (e triste) de nossa história.

Gwyn,
A próxima vez que eu encontrar esse meu amigo (acho que vai demorar um pouco...) vou dar uma perguntada. Acho difícil...

Pax,
São os olhos do amigo...

Monsores,
Você,o Surf e a Nhé são os responsáveis por reavivá-la em minha memória...

Ricardo C. disse...

Luiz, não sei como não li esse post antes! Muito legal a tua história! Mas afinal de contas, vc pelo menos conversou com o teu amigo sobre o assunto? Fiquei curioso com o que vc fez depois de pôr no post essas lembranças...

Abração!

Luiz disse...

Ricardo,

O cara foi eleito deputado federal e estão meio rarosos nossos encontros. Depois do post, ainda nenhum.

Nos encontros dos últimos anos (poucos), não me veio à mente o assunto.

Prometo que do próximo não passa...