Logo no 
primeiro post deste ano, lembrei que iríamos comemorar neste ano o centenário de nascimento do maior poeta popular do Brasil. Chegou a hora.
Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como 
Patativa do Assaré, nasceu em 05 de Março de 1909 na Serra de Santana, no pequeno município de Assaré, na região Sul do Ceará. Desde cedo, em virtude da morte precoce de seu pai, teve que ajudar a mãe na roça, e isso apesar de ser cego de um olho desde os 4 anos em virtude de uma doença. Frequentou a escola por apenas alguns meses, apenas o suficiente para ser alfabetizado. Antes disso, porém, já compunha poemas, que guardava na extraordinária memória. Quando ganhou da mãe a primeira viola, adquirida em troca de uma ovelha, passou a fazer repentes e a se apresentar em festas. Daí em diante, sua longa vida foi de uma produção sem fim.
Para alguns de nós, talvez seja complicado entender o que realmente significa ser um poeta popular. Para ajudar a situar bem essa questão e onde Patativa do Assaré se insere, transcrevo um artigo do jornalista José Neumane Pinto, publicado no Estadão em 13 de Julho de 2002, cinco dias após a morte do poeta:
"A poesia sertaneja brota do chão -     esturricado, quando submetido à inclemência dos longos períodos de     estiagem, ou virado barro pegajoso depois de chuva. Feito milho,     feijão e mandioca, da qual se extrai a farinha, que também nascem no     solo do sertão, ela tem lá seus aspectos nutrientes: mata a fome de     beleza no meio da paisagem cinzenta e esquálida. É épica, ao narrar     proezas de valentes. Lírica, de um lirismo pungente, quando tece     loas ao amor ou se debruça sobre a saga de uma raça que sobrevive     heroicamente em sua luta contra as intempéries da natureza, luta que     quase sempre termina em retirada, na repetição cíclica do êxodo     bíblico. É feita para a dor do lamento e o gozo do riso. O poeta     sertanejo é familiarizado com ritmos e cadências - há pouca     diferença entre poesia e canto, embora seu cantar seja monocórdio, a     palo seco, sem muita graça para ouvidos que a ele não estejam     habituados. Que não se exija do poeta perícias de esgrimista da     linguagem nem habilidades de pesquisador da semântica. Sua poesia     serve a sua gente: descreve sua vida, ou seja seu convívio com a     paisagem ou com outros viventes.
Só quem entender isso plenamente vai     ser capaz de também compreender a importância de Patativa do Assaré     na poesia brasileira contemporânea. O nome artístico adotado pelo     cearense Antônio Gonçalves da Silva é o primeiro passo para tanto.     Patativa é uma ave canora e Assaré, o lugar ermo onde nasceu, se     criou e viveu a vida inteira. Cantos de Patativa, título de sua obra     de estréia, da mesma forma, expressa com clareza o que pretende e a     que se apresenta - trata-se de um manifesto curto, que não admite     desvios nem tergiversações. O poeta, como o pássaro, canta e tem de     cantar bonito, com ritmo e precisão, além de exibir ao ouvinte as     ricas cores de sua plumagem.
Patativa de Assaré não pertenceu à     estirpe dos repentistas, cantadores e violeiros que improvisam em     diversos modos (gêneros poéticos) noites a fio para diversão de quem     se reúna para ouvi-los. Mas, sim, a um tipo intermediário entre o     improvisador de desafios e o poeta erudito, o tal poeta matuto:     compõe seus versos escritos nos moldes dos poemas clássicos com     padrões de rima e métrica bem definidos, mas usa uma linguagem     simples, quase um dialeto, com o qual se comunica diretamente com o     homem comum, o roceiro (que ou ficou no campo árido ou fugiu para a     periferia dos centros urbanos próximos ou distantes de seu lugar de     origem). Sua obra, a meio caminho entre o improviso e a elaboração     erudita, é impressa, encadernada e costurada em livros, sendo o mais     famoso deles o Cante lá Que Eu Canto cá, editado pela Vozes de     Petrópolis em 1978 e já na 11.ª edição.
Ele também é um poeta de bancada, ou     seja, escreveu folhetos de cordel, gênero ao mesmo tempo escrito e     oral de poesia, contendo narrativas de grandes feitos, casos de amor     ou simples palhaçadas em folhetos impressos pelos próprios autores     que os narram eles mesmos, como muezins que cantam as orações nas     mesquitas muçulmanas, em alto-falantes e megafones nas feiras livres     do interior nordestino. É de sua autoria uma interessante adaptação     do conto das Mil e Uma Noites História de Aladim e da Lâmpada     Maravilhosa. E de sua lavra, a saga política do Padre Henrique e o     Dragão da Maldade.                 
Poeta de livro e folheto, Patativa     também se dedicou à composição, musicando poemas de sua própria     lavra, alguns dos quais se tornaram grandes sucessos de público -     como foi o caso de Triste Partida, na voz de Luiz Gonzaga, e Vaca     Estrela e Boi Fubá, uma de suas toadas gravadas pelo amigo,     conterrâneo e grande divulgador Raimundo Fagner. A composição     musical, bem diferente do improviso poético dos violeiros, foi seu     jeito de romper os limites do desprezo e do desconhecimento das     grandes platéias urbanas em relação à incompreendida poesia matuta,     gênero do qual foi tão príncipe (como se dizia antigamente dos     melhores poetas) quanto Seu Lua foi Rei do Baião. "
 E como homenagem final ao mestre, vale a pena também transcrever um dos poemas acima citados, e que toca especialmente fundo na alma nordestina:
Triste Partida
Meu Deus, meu Deus...
Setembro passou
Outubro e Novembro
Já tamo em Dezembro
Meu Deus, que é de nós,
Meu Deus, meu Deus
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste
Com medo da peste
Da fome feroz
Ai, ai, ai, ai
A treze do mês
Ele fez experiência
Perdeu sua crença
Nas pedras de sal,
Meu Deus, meu Deus
Mas noutra esperança
Com gosto se agarra
Pensando na barra
Do alegre Natal
Ai, ai, ai, ai
Rompeu-se o Natal
Porém barra não veio
O sol bem vermeio
Nasceu muito além
Meu Deus, meu Deus
Na copa da mata
Buzina a cigarra
Ninguém vê a barra
Pois a barra não tem
Ai, ai, ai, ai
Sem chuva na terra
Descamba Janeiro,
Depois fevereiro
E o mesmo verão
Meu Deus, meu Deus
Entonce o nortista
Pensando consigo
Diz: "isso é castigo
não chove mais não"
Ai, ai, ai, ai
Apela pra Março
Que é o mês preferido
Do santo querido
Senhor São José
Meu Deus, meu Deus
Mas nada de chuva
Tá tudo sem jeito
Lhe foge do peito
O resto da fé
Ai, ai, ai, ai
Agora pensando
Ele segue outra tria
Chamando a famia
Começa a dizer
Meu Deus, meu Deus
Eu vendo meu burro
Meu jegue e o cavalo
Nós vamos a São Paulo
Viver ou morrer
Ai, ai, ai, ai
Nós vamos a São Paulo
Que a coisa tá feia
Por terras alheia
Nós vamos vagar
Meu Deus, meu Deus
Se o nosso destino
Não for tão mesquinho
Cá e pro mesmo cantinho
Nós torna a voltar
Ai, ai, ai, ai
E vende seu burro
Jumento e o cavalo
Inté mesmo o galo
Venderam também
Meu Deus, meu Deus
Pois logo aparece
Feliz fazendeiro
Por pouco dinheiro
Lhe compra o que tem
Ai, ai, ai, ai
Em um caminhão
Ele joga a famia
Chegou o triste dia
Já vai viajar
Meu Deus, meu Deus
A seca terrível
Que tudo devora
Lhe bota pra fora
Da terra natá
Ai, ai, ai, ai
O carro já corre
No topo da serra
Oiando pra terra
Seu berço, seu lar
Meu Deus, meu Deus
Aquele nortista
Partido de pena
De longe acena
Adeus meu lugar
Ai, ai, ai, ai
No dia seguinte
Já tudo enfadado
E o carro embalado
Veloz a correr
Meu Deus, meu Deus
Tão triste, coitado
Falando saudoso
Seu filho choroso
Exclama a dizer
Ai, ai, ai, ai
De pena e saudade
Papai sei que morro
Meu pobre cachorro
Quem dá de comer?
Meu Deus, meu Deus
Já outro pergunta
Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato
Mimi vai morrer
Ai, ai, ai, ai
E a linda pequena
Tremendo de medo
"Mamãe, meus brinquedo
Meu pé de fulô?"
Meu Deus, meu Deus
Meu pé de roseira
Coitado, ele seca
E minha boneca
Também lá ficou
Ai, ai, ai, ai
E assim vão deixando
Com choro e gemido
Do berço querido
Céu lindo azul
Meu Deus, meu Deus
O pai, pesaroso
Nos filho pensando
E o carro rodando
Na estrada do Sul
Ai, ai, ai, ai
Chegaram em São Paulo
Sem cobre quebrado
E o pobre acanhado
Procura um patrão
Meu Deus, meu Deus
Só vê cara estranha
De estranha gente
Tudo é diferente
Do caro torrão
Ai, ai, ai, ai
Trabaia dois ano,
Três ano e mais ano
E sempre nos prano
De um dia vortar
Meu Deus, meu Deus
Mas nunca ele pode
Só vive devendo
E assim vai sofrendo
É sofrer sem parar
Ai, ai, ai, ai
Se arguma notícia
Das banda do norte
Tem ele por sorte
O gosto de ouvir
Meu Deus, meu Deus
Lhe bate no peito
Saudade lhe molho
E as água nos óio
Começa a cair
Ai, ai, ai, ai
Do mundo afastado
Ali vive preso
Sofrendo desprezo
Devendo ao patrão
Meu Deus, meu Deus
O tempo rolando
Vai dia e vem dia
E aquela famia
Não vorta mais não
Ai, ai, ai, ai
Distante da terra
Tão seca mas boa
Exposto à garoa
À lama e o paú
Meu Deus, meu Deus
Faz pena o nortista
Tão forte, tão bravo
Viver como escravo
No Norte e no Sul
Ai, ai, ai, ai