20 de março de 2009

Estado laico (pero no mucho...)

Nesta semana, por obrigação profissional, assisti a uma sessão da Câmara de Vereadores de uma certa cidade do interior. Não era uma sessão comum, mas uma sessão solene em homenagem a determinada efeméride. Entretanto, guardou o rito de uma sessão comum, com chamada dos vereadores, leitura da ordem do dia, etc.

Tudo muito bom, tudo muito bem, mas... Sempre tem um "mas".

Ainda no início da sessão (acho que logo após a declaração de abertura pela presidente da Câmara), fui surpreendido com o chamado para que todos se pusessem de pé enquanto uma das vereadoras ocupava a tribuna para "a leitura do texto bíblico". No caso, um trecho do Antigo Testamento que tratava de como o povo devia seguir as leis.

Quem me conhece, tanto pessoalmente como pelo mundo virtual, sabe que não sou, de forma alguma, anti-religioso. Tenho minha fé, e se não participo dos rituais de minha religião de maneira exemplar, tampouco sou totalmente avesso a eles.

Tenho, isso sim, divergências marcantes com a hierarquia da minha religião quanto a assuntos do dia-a-dia das pessoas. Considero que muitas posições dessa hierarquia não entraram nem mesmo no século XX, que dirá do século XXI. E uma das principais divergências é exatamente quanto a separação entre Estado e Religião. Tenho total crença na norma constitucional que decreta que o estado brasileiro é laico, sem exceções. E que nenhuma religião deve tentar impor suas visões de mundo sobre o arcabouço legal.

Claro que já tomei conhecimento de dezenas de episódios que infringem a norma constitucional. Especialmente a colocação de símbolos religiosos em ambiente públicos, como parlamentos, tribunais, etc. Até a invocação de Deus (mesmo de forma genérica, sem identificar a crença) para proteger a Constituição ou eventos públicos não me é desconhecida.

Entretanto, foi a primeira vez que um fato desses me chocou diretamente. Posso até ter presenciado algo similar anteriormente, mas deve ter sido um ato muito menos ostensivo, de tal forma a não chamar minha atenção.

Tenho algumas divergências com o atual governo, mas sempre admirei a forma como o Presidente Lula, assumidamente um católico, não perde a chance de, quando necessário, reafirmar a laicidade do Estado brasileiro.

É uma pena que os diferentes gestores públicos brasileiros, nas diversas esferas e nos diversos poderes, façam vista grossa para uma das mais duramente conquistadas formas de liberdade, a de ter ou não uma religião, e da não-interferência das religiões nos negócios de estado.

Aquele momento, quando a parlamentar subiu à tribuna e fez a leitura, cutucou profundamente aquele defensor das liberdades que vive adormecido dentro de mim. Após a solenidade, comentei o fato com dois colegas, e eles não haviam atentado para o significado do ato. Um deles, mais acostumado a comparecer a sessões de Câmaras de Vereadores, até disse que já tinha presenciado coisas similares em algumas outras cidades.

Afinal de contas, vivemos ou não sob a égide de um Estado realmente laico? Ou será que, como em muitas coisas neste país, a maioria silenciosa da população acaba tendo que conviver com pequenas, mas não desprovidas de importância, violações de suas liberdades fundamentais?

8 comentários:

Pax disse...

Acho que você tem total razão, ou seja, a leitura da Bíblia numa Câmara é totalmente inapropriada para o Estado Laico. Mais que isso, é também inapropriado para a Liberdade de Culto.

Marcelo disse...

Luiz e Pax,

Interessante observar que muitas pessoas são como os colegas do Luiz, que não percebem a gravidade da situação. Num país de tradição católica como o nosso, as pequenas intromissões da ICAR no nosso cotidiano passam por coisas banais, comuns.

Luiz disse...

Darw e Pax,

Detalhe que esqueci: a cidade é governada pelo PT, a Câmara tem maioria do PT e o bispo católico tem péssimas relações com a prefeitura (chegou a fazer campanha pelo candidato tucano).

Anônimo disse...

Luiz, o difícil é conseguir manter-se o suficientemente distante e crítico como para perceber episódios como esse — e te parabenizo por isso. Se bobear, nem os ateus mais "assertivos" teriam feito o recorte que vc fez. Talvez se queixassem da leitura escolhida, ou mesmo do político que a fazia, mas não do aspecto negativo que ela representou naquele espaço público...

Monsores, André disse...

Luiz, eu também ficaria chocado, como você bem sabe.

Aproveito para relatar um outro episódio, dessa vez envolvendo um tribunal.

Certa vez, em um tribunal aqui de Joinville, estávamos numa sessão de conciliação, quando o Juiz fez todo um discurso a respeito da ética baseado em preceitos religiosos, inclusive infundindo passagens bíblicas pelo seu discurso. Acima do magistrado, sobre sua cabeça, estava uma cruz, sem Jesus pregado. A sessão, que era pura pró-forma, já que nós já havia sido formulado acordo entre as partes antes da audiência, poderia ter durado cinco minutos. Acabou durando mais de meia-hora.

Além de ter perdido tempo, devo dizer que me senti profundamente ofendido.

Monsores, André disse...

"já que já havíamos formulado acordo entre as partes antes da audiência,"

Ficou muito feio.

Colafina disse...

Luiz,

Já presenciei situações semelhantes, e em todas as vezes que comentei sobre a impropriedade da atitude [morro e não aprendo a ficar de boca fechada!], ouvi, invariavelmente, a mesma justificativa: Mas por que não pode? A religião oficial no Brasil não é a católica?

Com um argumento desses, discutir seria pura perda de tempo!

anrafel disse...

É verdade, não é um contingente pequeno da população que acredita ser a católica "a religião oficial" do país.


Faço parte do cadastro de jurados do Tribunal de Justiça daqui. As pessoas vivem me perguntando se ocorreu isso ou aquilo, sempre baseadas nos filmes de tribunal americanos.

Acham estranho, por exemplo, que não exista aquele juramento sobre a Bíblia. Daí a achar normal o Jesus crucificado atrás da cadeira do juiz é um passo muito pequeno. E muito grande para ferir o estado laico.